Você já viu este tênis por aÃ. Em São Paulo, ele está nos pés dos descolados nas regiões do Centro e da República e também na Faria Lima, por onde circula a turma das finanças. Em Paris, basta sair na rua para que a letra "v" passe na sua frente a toda velocidade, estampada nos sneakers dos ciclistas zanzando pela cidade.
A Veja, marca de tênis casuais representada por um "v" nas laterais dos calçados, vem conquistando as capitais do mundo com seus modelos fáceis de serem combinados com calças jeans ou de alfaiataria. Com a abertura, nesta semana, de sua primeira loja no Brasil, a empresa francesa de alma brasileira quer ganhar ainda mais as ruas. Mas não só.
A inauguração da loja, nesta quarta, na rua Oscar Freire, centro do comércio de luxo de São Paulo, chama a atenção para a pauta da sustentabilidade, que domina as conversas na indústria da moda. Isso porque, desde seu primeiro par, em 2005, a Veja âantes conhecida por Vert no Brasilâ busca matérias-primas que não agridam o meio ambiente. Na contramão de muitas marcas de tênis, a empresa dá aos seus pares um ar mais de produto consciente do que de objeto de desejo impulsionado pela propaganda.
Criar a partir de uma preocupação com os recursos naturais, como faz a Veja, é uma atitude quixotesca, dado que o foco de algumas das grandes empresas calçadistas, como Nike, Converse e Vans, é envolver os sneakers em marketing para posicioná-los como produtos associados a estilos de vida âo basquete, no caso da Nike, a música, no da Converse, e o skate, no da Vansâ, não chamar o consumidor para ser cúmplice em cuidar do planeta.
"Queria mergulhar no assunto novo na época, que era a sustentabilidade", diz, em português fluente, François Morillion, um dos sócios da Veja, ao receber jornalistas na sede da empresa, em Paris, prédio que funcionou como gráfica do Partido Comunista francês e hoje abriga salas com nomes de capitais brasileiras ornadas por fotos de Claudia Andujar e pinturas de Jaider Esbell.
Naquele começo da década de 2000, recém-formados em administração, Morillion e seu sócio Sébastien Kopp trabalhavam no mercado financeiro em Nova York, o que parecia sinônimo de vida ganha. Mas "a gente estava triste", conta Morillion. Numa noitada regada a vodka, a dupla decidiu largar os empregos e viajar o mundo pesquisando como as empresas respondiam às questões ecológicas que se impunham na sociedade de consumo.
Empreendedores em busca de um propósito, visitaram confecções na China â"as fábricas não eram horrÃveis, mas os lugares de habitação das costureiras pareciam presÃdios", diz Morillionâ e depois chegaram ao Brasil. Na floresta amazônica em Rondônia, encontraram uma cooperativa de produtores de palmito, momento em que contam ter percebido a importância de valorizar os pequenos produtores que tratam o bioma com cuidado.
Durante a viagem, que se estendeu por um ano, compravam pares de tênis por onde passavam e enviavam para as suas casas na França. "A gente escolheu o tênis porque a gente era fissurado em tênis. Tinha essa paixão pelo produto", diz Morillion, ao comentar o foco da Veja.
Eles terminaram a expedição e criaram a marca. O modelo inaugural da Veja, desenhado por Kopp, foi lançado há 20 anos âera um calçado com cabedal de lona e sola de borracha inspirado nos tênis brasileiros de vôlei da década de 1970, que levava 20% de borracha fornecida por uma cooperativa de seringueiros da Amazônia, algo inovador numa época em que praticamente só a Osklen levantava a bandeira do meio ambiente na moda.
Com o tempo, o resto da cadeia de produção se formou. Cooperativas do Nordeste passaram a fornecer algodão orgânico para os cadarços, e fazendas no Uruguai viraram as provedoras de couro. O nylon dos tênis de corrida, mais recentes no portfólio da Veja, vem da reciclagem de garrafas PET.
Descontentes com a situação dos trabalhadores das fábricas em paÃses da Ãsia âonde quase 90% dos calçados do mundo são feitos, segundo o relatório The World Footwear Yearbookâ, a dupla encarregou os polos calçadistas do Rio Grande do Sul e do Ceará de fabricarem seus tênis. Uma pequena parte é confeccionada em Portugal.
Embora a Veja se preocupe com a rastreabilidade da matéria-prima, Kopp afirma que os clientes da marca não dão bola para isso. "Essa perfeição é nossa meta, mas é perfeição para nós, porque ninguém sabe. A gente está louco com algodão orgânico, mas em Paris meus amigos me olham [e dizem] assim: 'eu vou comprar um Nike, um Reebok'".
Diferentemente da indústria de vestuário, quase não há iniciativas para medir o impacto ambiental da produção e do consumo de calçados no mundo. Um dos fatores, segundo uma reportagem do site especializado Business of Fashion, é porque estes produtos são mais complicados de serem produzidos do que roupas, por contarem com mais componentes. Além disso, o setor calçadista não se deparou com o mesmo escrutÃnio relativo à sustentabilidade que recaiu sobre a moda.
Segundo um estudo de Andy Polk, diretor executivo da Footwear Inovation Foundation, uma organização independente formada por executivos da indústria calçadista, a produção de calçados foi responsável por menos de 1% do dióxido de carbono emitido no mundo em 2023. Este número corresponde aos estimados 23 bilhões de pares de calçados produzidos naquele ano, quase três pares por pessoa no mundo.
Sem perder de vista este cenário, a Veja prosperou e fincou seu nome no imaginário fashion com suas silhuetas casuais e esportivas. Além dos designs próprios, lançaram tênis em colaborações com estilistas como Alexandre Herchcovitch, um dos principais da moda brasileira, e Rick Owens, o preferido dos góticos, além de modelos com a grife italiana de luxo Marni.
A marca tem lojas em Nova York, Berlim, Madri, Londres, Paris, Bordeaux âna Françaâ e, agora, São Paulo. Com paredes de tijolo à mostra e uma escada de concreto aparente, o projeto da loja paulistana ficou a cargo do arquiteto Roberto Somlo, que manteve as paredes cruas, com pedaços de canos e antigas instalações visÃveis. "à como São Paulo, uma cidade que se reconstrói sobre si mesma", diz Somlo. Completa o ambiente um neon de Kleber Matheus no teto.
A loja também terá serviço de sapateiro, para reparos em calçados da Veja e de outras marcas, o que já é oferecido pela empresa na Europa por preços a partir de ⬠10, cerca de R$ 65. Kopp diz que o serviço, criado para estender a vida útil dos calçados em ao menos um ano, surgiu porque as pessoas jogam fora tênis que podem ser usados por mais tempo. Muitos dos pares descartados, ele conta, "estão apenas sujos".
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